Tecnologia inspirada no cérebro pode acelerar diagnóstico de doenças raras

Identificar doenças raras no Brasil e no mundo ainda é um desafio para médicos e uma angústia constante para milhares de famílias. Muitas dessas condições são genéticas, complexas e pouco conhecidas, o que dificulta o diagnóstico correto e pode levar anos de incerteza.
Uma longa jornada até o diagnóstico
São consideradas doenças raras um grupo de 6 mil a 8 mil condições que afetam até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos.
Mais de 13 milhões de pessoas convivem com uma dessas condições no Brasil, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. No mundo, estima-se que pelo menos 300 milhões tenham algum tipo de enfermidade do tipo.
Apesar do número expressivo, o caminho até um diagnóstico correto costuma ser lento, confuso e exaustivo.
Atualmente, ele é feito por meio de uma combinação de avaliação clínica, exames complementares (imagem e bioquímicos) e testes genéticos.
“Muitas das síndromes raras apresentam sintomas variados e que se sobrepõem com o quadro clínico de doenças comuns, tornando o diagnóstico clínico ainda mais difícil”, explica Vanessa Montaleone, geneticista do Núcleo de Genética do Hospital Sírio-Libanês.
No Brasil, os desafios se tornam ainda maiores pelas complexidades intrínsecas ao país. Antoine Daher, presidente da Casa Hunter e da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas), destaca as principais dificuldades enfrentadas pelas famílias:
- demora no diagnóstico (em média, leva de 5 a 7 anos até se chegar a um diagnóstico correto);
- desinformação e falta de conhecimento adequado sobre o tema (inclusive pelos profissionais de saúde responsáveis pelo caso);
- custo elevado de exames genéticos, consultas especializadas e terapias de suporte;
- acesso desigual aos serviços de saúde para as famílias que dependem exclusivamente do SUS.
“Embora existam os Serviços de Referência em Doenças Raras, criados pela Portaria GM/MS nº 199/2014, eles se concentram em grandes centros urbanos e são insuficientes para atender à demanda nacional. A navegação pelo sistema, do atendimento básico até o especializado, também é falha, o que impede o acesso tempestivo ao diagnóstico”, aponta Daher.
A tecnologia de grafos e o caso do hospital infantil alemão
Desenvolvida há quase 20 anos pela startup Neo4j, a tecnologia de banco de dados em grafos tem como objetivo identificar e armazenar a relação entre dados — e não apenas os dados em si.
“A intenção é apresentar uma conexão visual dessas relações, que funcionam como as ligações promovidas pelas sinapses do cérebro. Assim, é possível descobrir padrões ocultos e obter insights altamente conectados em tempo real”, diz o VP Latam Paulo Farias da Neo4j.
Diferentemente dos bancos tradicionais, que dependem de tabelas ou esquemas fixos, os bancos em grafos utilizam nós e conexões para representar, conectar e fornecer contexto às informações de maneira mais intuitiva e flexível. “Sendo até 1.000 vezes mais rápido e consumindo menos recursos de nuvem”, expõe Farias.
No contexto das doenças raras, a tecnologia se torna uma solução que permite a pesquisadores e médicos conectar sintomas, variantes genéticas, publicações científicas e históricos clínicos em uma rede dinâmica e consultável. Isso contribui para a formulação de diagnósticos mais precisos e em menor tempo.
“Levando em consideração os mais de 3 bilhões de DNA presentes no corpo humano, analisar e mapear a relação de cada um com diagnósticos, exames e medicamentos seria humanamente impossível. Sem falar nas mais de 6 mil a 8 mil doenças raras catalogadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS)”, analisa Farias.
O recurso tem sido utilizado no Hospital Infantil Dr. von Hauner, na Alemanha. Para isso, foi criado o Grafo de Conhecimento Clínico (CKG), que combina tecnologia de grafos, inteligência artificial (IA) e aprendizado de máquina (ML), contendo dados de 2.500 pacientes pediátricos do país (até o momento).
Cada um deles é representado por um nó no sistema, sendo conectado a outros nós (como sintomas, proteínas e fenótipos).
Com isso, médicos do hospital conseguem navegar por um conjunto de cerca de 16 milhões de nós e 220 milhões de relações.
De acordo com Daniel Weiss, chefe de BioIT do Hospital Infantil Dr. von Hauner, antes da adoção da tecnologia de grafos, diagnosticar doenças raras era um processo manual e demorado: quando não se encontrava uma variante genética conhecida, médicos e cientistas precisavam analisar dezenas de possibilidades individualmente — algo que poderia levar meses ou até anos.
Com a tecnologia (ainda em fase de prova de conceito), é possível automatizar esse processo, conectando dados clínicos, genéticos e literatura científica em um sistema que facilita a análise por inteligência artificial.
“Essa automação lida com o trabalho que anteriormente recaía sobre um grupo de especialistas (…) Ainda não celebramos sucessos de destaque para crianças individuais. No entanto, estamos convencidos de que é o caminho a seguir: automatizar o trabalho especializado, integrar camadas de dados mais ricas (RNA, proteômica) e permitir que pesquisadores externos contribuam. A longo prazo, essa combinação deve tornar o diagnóstico mais rápido, mais preciso e genuinamente personalizado”, destaca Weiss.
E no Brasil, é possível aplicar?
Apesar do entusiasmo, não há indícios de que essa tecnologia atravesse o oceano e desembarque no Brasil em breve. Na visão de Daher, alguns obstáculos podem dificultar sua adoção imediata.
Infraestrutura limitada nos serviços públicos, pouca padronização dos sistemas de saúde e baixa capacitação para lidar com inteligência artificial são algumas das barreiras atuais.
Ainda assim, ele acredita que é possível mudar esse cenário. Para isso, seria necessário investir em inovação, capacitar profissionais e aproximar centros de pesquisa e hospitais do SUS.
Por ora, os testes genéticos modernos já representam um avanço importante, destaca Montaleone. Técnicas de sequenciamento de DNA têm se mostrado cada vez mais eficientes e rápidas.
“A implementação do sequenciamento por NGS (Next Generation Sequencing) nos possibilita sequenciar múltiplos fragmentos de DNA simultaneamente e, em conjunto com os avanços na bioinformática, permite a análise de grandes volumes de dados de forma mais rápida, com maior precisão e a um custo menor”, comenta a médica.
Quanto ao tratamento, terapias gênicas para diversas condições genéticas são utilizadas ou estudadas, além de técnicas inovadoras como CRISPR (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats).
“Elas trazem a possibilidade de mais avanços no campo das terapias gênicas, permitindo esperança para as famílias e pacientes que sofrem de síndromes genéticas raras.”
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Este conteúdo foi originalmente publicado em Tecnologia inspirada no cérebro pode acelerar diagnóstico de doenças raras no site CNN Brasil.
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